Durante muito tempo os ritos de passagem demarcaram as mudanças significativas de nossas vidas. Porém, nas sociedades em que vivemos, essas cerimônias perderam um pouco o seu valor simbólico. Saiba o porquê.
Casamento, batizado, aniversário de quinze anos ou uma formatura são cerimônias especiais que marcam as nossas vidas. Não à toa, registramos esses momentos através de vários álbuns de fotografias, que inundam nossas estantes de memórias queridas. São ocasiões tão importantes que, vez ou outra, recorremos às nossas fotos antigas para relembrarmos de todos aqueles minutos vividos e usufruídos. Muitos duram apenas algumas horas, mas estão cheios de valores simbólicos duradouros. Afinal, representam uma passagem de um estado a outro, como por exemplo, de solteiro a casado, de adolescente a adulto.
Essas ocasiões são chamadas de rituais de passagem, ou seja, cerimônias que sinalizam o reconhecimento social de um indivíduo perante a comunidade da qual faz parte. Existem vários ao longo da vida de uma pessoa; no meio de todos eles temos os mais comuns - como o ano novo e os aniversários; os mais esperados, como a formatura; e os mais específicos, como cerimoniais religiosos e até mesmo a troca de faixas nas artes marciais.
Os rituais de passagem sempre existiram em todas as culturas antigas ou contemporâneas, primitivas ou urbanas, acompanhando cada mudança de idade, de lugar, de estado ou de posição social. Mais que exigências culturais, os ritos são reivindicações da construção e da afirmação da identidade humana, frente ao que o mundo nos apresenta. Representa o momento em que passamos de um ciclo a outro e somos chamados a nos posicionarmos enquanto indivíduos no espaço social em que vivemos.
Entenda melhor: no judaísmo, por exemplo, quando um garoto completa 13 anos, atinge a maioridade religiosa e passa a ser responsável por cada um de seus atos. Para marcar essa passagem, é celebrado o Bar-Mitzvah, uma cerimônia em que o jovem é chamado pela primeira vez para a leitura da Torah, o livro sagrado judeu. Esse ritual iniciático ocorre diante da comunidade para demonstrar a todos os presentes a mudança de status do garoto. É só a partir daí que a sociedade passa a olhá-lo de um modo diferente, como alguém possuidor de um novo lugar social, organizado e legitimado pela comunidade através de tal cerimônia.
A crise dos rituais
Infelizmente, nas sociedades modernas, a importância dos ritos de passagem se reduziu, alguns foram ignorados e outros deturpados. Perdeu-se o valor simbólico existente em um baile de debutante, momento que representava a transição da menina para o corpo de mulher. Era na celebração dos quinze anos que a garota depilava-se pela primeira vez, fazia a sobrancelha ou tinha o consentimento dos pais para namorar. Hoje em dia, nada disso é feito. A cerimônia, que antes marcava o início de uma nova posição, converteu-se em um momento de ostentação de poder aquisitivo, esvaziado de sentido e significação. Os valores de outrora perderam-se e festa de 15 anos não representa mais passagem para lugar nenhum.
Os rituais de passagem não têm mais o mesmo poder simbólico de antes. Tomando o batizado cristão como outro exemplo, poderíamos nos perguntar quantas pessoas que batizam os seus filhos são, realmente, cristãs. Quantas pretendem cumprir a promessa solene feita diante do seu sacerdote? Quem pretende manter a criança na fé dos seus antepassados? Obviamente, nas sociedades primitivas, tais promessas eram obrigações indiscutíveis e sagradas. Rompê-las era colocar em risco a própria sobrevivência da tribo como unidade coerente e coletiva.
A quase total ausência de ritos de passagem que suportem a construção de laços sociais e discursivos, ou seja, a falta de práticas que legitimam o sujeito em sua comunidade, pode ser pensada como uma das causas do grande número de jovens despreparados para as dificuldades da vida. Inadaptados à dura realidade do mundo, muitos preferem existir como eternas crianças ou adolescentes, por isso, não amadurecem de forma tranquila e saudável. Se antes a função das cerimônias era ajudar a organizar uma pertinência discursiva e social na mudança de uma idade a outra, com a perda de seu valor, encontramos jovens mais desorganizados e desamparados na realidade em que vivemos.
Sem rituais de passagem que cumpram a função de dispositivos sociais ordenadores, os jovens buscam substitutivos. Muitos partem para algumas transgressões, como por exemplo, o uso de drogas. Outros se ligam ao consumismo e, toda vez que compram um objeto atribuem um valor a ele até o substituir por outra coisa, conjugando, desse modo, de um imediatismo narcísico muito próprio da sociedade fragmentada da atualidade, ou seja, os indivíduos buscam suas identidades a partir dos objetos que consomem.
Se, por um lado, os rituais suportam significados, eles ajudam a dar um norte para o sujeito, uma vez que lhe conferem um lugar social e propagam valores a serem seguidos. Em contrapartida, os objetos frutos de nosso consumo são voláteis, portam valores temporários e não sustentam nenhuma estrutura simbólica.
Isso não significa que os rituais em si morreram completamente. De fato, vivemos em uma sociedade onde os valores que compartilhamos são mais diversificados. A forma como lidamos com o casamento, o batizado e demais cerimônias possui agora novos significados, formatos e espaços. Na contemporaneidade, os ritos de passagem estão distanciados do sagrado, são incapazes de cumprir as funções anteriores, mas, ainda assim, continuam presentes, embora sem as mesmas funções de antes.
Texto de Anabela Silva Queiroz, extraído do Portal iSaúdeBahia.